Se queres ser cego, sê-lo-ás
José Saramago
Na viragem do milénio, Ignacio Ramonet alertava para um conjunto de tendências e problemas no setor da comunicação social e como a omnipotência e omnipresença dos media influenciavam e determinavam decisivamente o curso das esferas sociais e políticas da sociedade, sem um devido escrutínio, ao contrário de outros poderes. A consolidação de grandes grupos de media, o crescimento da tecnologia, as imagens que se sobrepõem em catadupa e que podem ser facilmente manipuladas, o mimetismo mediático, a afirmação do sensacionalismo como vetor central na apresentação da informação perante as exigências da pressão do mercado (leia-se, conquista de mais audiências) colocaram-se com grande acuidade, gerando uma grande desconfiança e conduzindo a uma perda de credibilidade na comunicação social.
Anos mais tarde, com o advento das redes sociais, não se pode dizer que esses mesmos problemas tenham desaparecido. Não pode, todavia, deixar de ser salientado que os social media possibilitaram um livre acesso do cidadão ao centro do debate (desde logo pelas ferramentas que passam a estar ao seu dispor), o fim da hegemonia da exclusividade editorial e programática dos agentes do poder mediático e político, bem como o término do monopólio de gatekeeping dos media tradicionais na esfera pública. Não obstante a pertinência e questões que nos devem preocupar a todos levantados pelo novo documentário realizado por Jeff Orlowski, The Social Dilemma, alguns dos pontos descritos atrás não foram abordados, apostando preferencialmente na apresentação de um cenário iminentemente apocalíptico que a influência da Google, Facebook, Tik Tok e Twitter tem nas nossas vidas.
Os motores de busca e as redes sociais são instrumentos centrais de comunicação, procura e partilha de informação. No âmbito do novo coronavírus e de uma doença que pouco ainda se conhece, dados sobre infeções, contágios, a (in)existência de vacinas ou de novos fármacos (alimentados, muitas vezes, por líderes políticos), o número de internados e de vítimas mortais estão na origem de milhares de posts, mensagens no WhatsApp e de notícias falsas, que assumem uma dimensão viral. Como disse há meses o diretor-geral da OMS, “We’re not just fighting a pandemic; we’re fighting an infodemic”. Basicamente, a partilha de informação supostamente médica e científica fora do circuito dos especialistas pode ser particularmente perigosa e, mais do que esclarecer, gera desconfiança e cria-se o cenário perfeito para que as teorias da conspiração se afirmem temporariamente em tempos de incerteza e ansiedade.
A desinformação consiste em informação falsa ou imprecisa que deliberadamente visa enganar. Num documento tornado público pela Pan American Health Organization (com ligações à OMS), mais de 19.200 artigos foram publicados no Google Scholar desde o começo da pandemia e, só no mês de março, cerca de 550 milhões de tweets incluíam os termos coronavírus, corona vírus, covid19, covid-19, covid_19 ou pandemia. E este tópico remete também para uma situação descrita no documentário The Social Dilemma, a propósito das pesquisas online: a localização geográfica de cada indivíduo sugere-lhe determinadas páginas que o orientam para linhas específicas da questão, podendo encaminhá-lo para fóruns de discussão que contribuem para alimentar posições pré-definidas e que podem perdurar, mesmo quando todas as evidências técnicas e científicas vão no sentido contrário. A verdade, em si, aparenta ser algo já obsoleto.
Dir-se-ia que esta pandemia de informação (infodemic) pode tornar a pandemia ainda pior. Assim, poderá tornar-se difícil para os cidadãos, os decisores políticos e profissionais de saúde encontrarem uma orientação de confiança e fontes fidedignas (sites, organizações científicas, aplicações, etc.) quando, mais do que nunca, precisam delas. Todo esta torrente de comunicação e informação afeta os processos de tomada de decisão quando o que se pede são respostas imediatas aos problemas e não é dedicado tempo suficiente para analisar certo tipo de evidências. Os media lidam com o imediato, o espontâneo, enquanto que o trabalho científico exige reflexão, testes e confrontação dos dados. Por outro lado, o problema é afetado pela possibilidade de cada um poder escrever ou publicar (artigos ou podcasts) na Internet, nomeadamente nas redes sociais (contas individuais ou institucionais), sem ser submetido a qualquer controlo de qualidade para averiguar da veracidade do que é dito ou escrito. Tudo isto contribui, deste modo, para gerar ansiedade, depressão e medo nas pessoas.
De acordo com o Reuters Institute for the Study of Journalism, um conjunto de investigadores analisou uma amostra de artigos inexatos ou não completamente verdadeiros publicados (225, sendo a maior parte das redes sociais, mas também divulgado na TV e em sites) entre janeiro e o fim de março de 2020 sobre o novo coronavírus, verificando que 59% dessa desinformação assumiu várias formas de reconfiguração e em que elementos verdadeiros eram, por norma, recontextualizados ou distorcidos. Por outro lado, 38% dessa desinformação era complemente fabricada.
Destaque também, nesse estudo, que a maior parte dessa desinformação nas redes sociais é potenciada pelo cidadão comum. Porém, um dos pontos mais interessantes é que os líderes políticos, celebridades e outras figuras públicas conhecidas produziram ou ajudaram a disseminar apenas 20% da desinformação, mas a mesma esteve na origem da maior parte das formas de interação com a mensagem das redes sociais na referida amostra. Mais de um terço da desinformação proveniente do topo (personalidades que ocupam lugares relevantes e/ou posições mais privilegiadas) inclui declarações dos políticos em ambientes públicos ou para os media, em que sobressaem os discursos de Donald Trump em eventos e comícios, as suas entrevistas à Fox News e os posts no Twitter.
O rol de posições polémicas do Presidente americano sobre a Covid-19 são inúmeras e passam, por exemplo, pela sugestão da toma de desinfetantes, que está tudo sob controlo e que a doença não afeta praticamente ninguém (quando se anunciavam já 200 mil vítimas mortais nos EUA), e a verdadeira pertinência do uso da máscara. Situações que adquiriram um efeito viral nas redes sociais. Contudo, e apesar da influência dos decisores políticos, não pode deixar de ser destacado a decisão do YouTube, do Facebook e do Twitter (nos primeiros tempos da pandemia) em remover publicações partilhadas pelo Presidente Jair Bolsonaro pois incluíam informação imprecisa sobre o coronavírus. Foi um primeiro passo, embora se discuta que mais deve ser feito para evitar a proliferação de notícias falsas ou truncadas.
Esta questão tem dominado as agendas mediáticas mundiais e alertou para a utilidade, mais do que nunca, do chamado fact-checking. As pessoas precisam de orientação para saber como lidar com um problema novo e uma situação como esta provocou um enorme volume informativo. É importante que a observação e o questionamento dos factos continue com o intuito de avaliar certos pressupostos que pairam no espaço público, embora isso não signifique que a validação da informação fora do âmbito do novo coronavírus se tenha tornado menos importante. Também é neste tabuleiro que se joga a credibilidade dos meios de comunicação social.
Muito se fala da possibilidade de uma cura ou vacina para este vírus para o princípio do próximo ano. Já um antídoto que cure de vez a desinformação, o boato e o preconceito, para isso, não está nada previsto.
Bibliografia e outras fontes consultadas
Brennen, J.S., et al (2020). Types, sources, and claims of COVID-19 misinformation. Disponível em: https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/types-sources-and-claims-covid-19-misinformation (acesso: 20/10/2020).
Pan American Health Organization (2020). Understanding the infodemic and misinformation in the fight against Covid-19. Factsheet nº5. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52052/Factsheet-infodemic_eng.pdf?sequence=14&isAllowed=y (acesso: 20/10/2020).
Ramonet, I. (1999). A tirania da comunicação. Porto: Campo das Letras.
Vicente, F.C. & Vicente, P.C. (2019). «Pós-verdade e política na era digital», Anuário Janus 2018-19, nº 19. Lisboa: Observare – Universidade Autónoma de Lisboa (pp. 20-21).
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About Francisco Vicente
Analista de media na Cision Portugal. Licenciado em Ciências da Informação e doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa. Tem publicado trabalhos na área da comunicação política. Gosta de viajar, ler, música e de futebol."